Esquizofrenia


ESQUIZOFRENIA - UMA ABORDAGEM A PARTIR DO DSM-IV-TR E DA PSICANÁLISE



No início do século XX, o psiquiatra alemão Eugen Bleuler criou o nome "esquizofrenia" a partir das palavras gregas "divisão" e "mente" para descrever a doença que antes levava o nome de “demência precoce” assim descrita por Kraepelin. Esta é a principal e a mais importante forma de psicose (Dalgalarrondo 2008), afetando 1% da população e manifesta-se na maior parte dos casos em adolescentes e adultos jovens, de forma totalmente imprevista. No entanto, há alguns indícios observados através de uma leitura a partir da psicanálise que nos apresenta algumas formas de manifestações ou certos comportamentos que podem ser observados antes da eclosão da crise e que podem sugerir a existência de uma estrutura psicótica, conforme nos mostra Calligaris no livro “Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”, em que nos indica a errância como uma dessas manifestações. Todos aqueles que estão em contato com pessoas esquizofrênicas são surpreendidos pela estranheza dos seus comportamentos, das suas palavras e dos seus raciocínios. Tal psicose normalmente apresenta sintomas como percepção delirante, alucinações auditivas, eco e difusão do pensamento e roubo do pensamento.

Na visão do DSM-IV-TR

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A esquizofrenia é caracterizada pelo DSM-IV-TR como uma perturbação cuja duração mínima é de 6 meses e inclui no mínimo 1 mês de delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento amplamente desorganizado ou catatônico. Os sintomas característicos envolvem uma série de disfunções cognitivas e emocionais que acometem a percepção, o raciocínio lógico, a linguagem e a comunicação, o controle comportamental, o afeto, a fluência e produtividade do pensamento, o impulso e a atenção.
Os delírios são crenças errôneas, habitualmente envolvendo a interpretação equivocada de percepções ou experiências. Seu conteúdo pode incluir temas de caráter persecutório, referencial, somático, religioso ou grandioso. Os delírios bizarros são considerados especialmente característicos da esquizofrenia. As alucinações podem ocorrer na modalidade auditiva, visual, olfativa, gustativa e tatil. A auditiva é mais comum sendo percebida como distinta do pensamento da própria pessoa. A desorganização do pensamento pode acontecer nas situações em que a pessoa salta de um assunto para outro; as respostas podem não estar relacionadas com as perguntas; o discurso pode ser incompreensível. Com relação ao comportamento amplamente desorganizado podem aparecer dificuldades no desempenho da vida diária, tais como preparar as refeições ou manter a higiene, sendo que sua aparência pode ser de acentuado desleixo. Os comportamentos catatônicos incluem uma diminuição acentuada na reatividade ao ambiente, podendo alcançar uma total falta de consciência.
Os indivíduos que eram socialmente ativos podem tornar-se pessoas retraídas, perder o interesse por atividades com as quais antes sentiam prazer. Podem apresentar um afeto inadequado (p. ex. sorriso, riso ou expressão facial tola na ausência de um estímulo adequado).
O diagnóstico diferencial entre esquizofrenia e transtorno delirante está na natureza dos delírios (não-bizarros, no transtorno delirante) e na ausência de outros sintomas característicos de esquizofrenia (p. ex. alucinações, discurso ou comportamento desorganizado, ou restrições na amplitude e intensidade da expressão emocional, na fluência e produtividade do pensamento e na iniciação de comportamentos dirigidos a um objetivo). O transtorno delirante é particularmente difícil de diferenciar do tipo paranoide de esquizofrenia, porque este subtipo não inclui discurso desorganizado, comportamento desorganizado ou afeto embotado e inadequado.
Exitem cinco subtipos de esquizofrenia que se diferenciam pelo quadro clínico do paciente. São eles:

PARANOIDE: presença de delírios ou alucinações auditivas proeminentes no contexto de uma relativa preservação do funcionamento cognitivo e do afeto. Os delírios são tipicamente persecutórios ou de grandeza. Os delírios podem ser múltiplos, mas geralmente são organizados em torno de um tema coerente.

DESORGANIZADO: discurso desorganizado, comportamento desorganizado e afeto embotado ou inadequado. O discurso desorganizado pode ser acompanhado por atitudes tolas e risos sem relação adequada com o conteúdo do discurso. A desorganização comportamental (isto é, falta de orientação para um objetivo) pode levar a uma severa perturbação na capacidade de executar atividades da vida diária.

CATATÔNICO: acentuada perturbação psicomotora, que pode envolver imobilidade motora e atividade motora excessiva.

INDIFERENCIADO: não há a predominância de um grupo específico de sintomas.

RESIDUAL: deve ser usado quando houve pelo menos um episódio de Esquizofrenia, mas o quadro clínico atual não apresenta sintomas psicóticos como delírios, alucinações, discurso ou comportamento desorganizados.


Critérios Diagnósticos para Esquizofrenia

A. Sintomas característicos: Dois (ou mais) dos seguintes, cada qual presente por uma porção significativa de tempo durante o período de 1 mês (ou menos, se tratados com sucesso):

(1) delírios;
(2) alucinações;
(3) discurso desorganizado (por ex., frequente descarrilamento ou incoerência);
(4) comportamento amplamente desorganizado ou catatônico;
(5) sintomas negativos, isto é, embotamento afetivo, alogia ou avolição.

Um exemplo a partir do filme: “A mulher invisível”, de Claudio Torres

Algumas cenas do filme “A mulher invisível”, de Claudio Torres, parecem retratar o quadro de esquizofrenia. Pedro (Selton Mello) é casado, possui um emprego razoável como controlador de tráfego e tem uma vida tranquila e satisfatória. No entanto, quando sua mulher o abandona ele passa a se isolar do mundo ficando trancado durante 3 meses no seu apartamento. Sua vida muda quando Amanda (Luana Piovani) bate a sua porta dizendo ser sua vizinha e pedindo uma xícara de açúcar. Pedro, que até então só ficava escrevendo cartas a sua ex-esposa     dentro de sua casa, volta a vida social com os amigos e colegas de trabalho. O problema reside no fato de que Amanda só existe na sua imaginação e ele acredita estar namorando com ela. Amanda é uma mulher ideal na medida em que foi criada dentro do mundo de fantasia do personagem. Segundo o que Pedro vê, Amanda é linda, caprichosa, gosta de futebol, o satisfaz plenamente na relação sexual, compreende suas questões melhor do que qualquer outra pessoa e aparece para tirá-lo daquela vida “sem sal” que estava vivendo por conta da desilusão amorosa que o acometeu e consequentemente isolou-o da vida social que tinha antes. Sem saber que sua namorada era “invisível” ele passa a leva-la aos locais que frequenta como festas e cinema. Pelo comportamento atípico de Pedro (p. ex., forma de caminhar, se portar e desenvolver diálogos com “ninguém”) o seu amigo, Carlos, passa a se preocupar com ele dizendo-lhe que Amanda não existe. Depois de certa resistência de Pedro em se convencer de que Carlos estava certo, ele se dá conta das palavras do amigo e começa a lutar contra a sua imaginação, mas, por algum tempo, nada adianta, pois Amanda continua a aparecer a sua frente. Ele só consegue se “curar” no momento em que se concentra ao escrever um livro cujo título é “A mulher invisível”; entretanto, ela volta a aparecer quando Pedro tem uma desiluzão amorosa com uma mulher de verdade, que Carlos havia lhe dito que não existia, mas que na realidade Carlos estava namorando. Por esse motivo os dois amigos brigam e ficam três anos sem se ver. No final do filme eles se encontram, falam das novidades, Carlos conta que se casou com uma amiga e teve três filhos, Pedro diz que não está namorando ninguém. Então Carlos lhe pede desculpas por aquele desentendimento que havia separado eles e entrega a Pedro o endereço da mulher que ambos foram apaixonados. Pedro vai a procura dela e quando a encontra, Amanda volta a aparecer na sua imaginação.

Contribuições da teoria psicanalítica para o entendimento da Esquizofrenia

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A contribuição de Freud à esquizofrenia deu-se a partir da tentativa de basear essa psicose em sua posição relativa à antitese entre ego e objeto. A suposição era a de que após o processo de repressão, a libido que havia sido retirada não procurava um novo objeto e refugiava-se no ego, ou seja, as catexias objetais eram abandonadas voltando a uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto. Segundo Freud, “a incapacidade de transferência desses pacientes (até onde o processo patológico se estende), sua consequente inacessibilidade aos esforços terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma hipercatexia do seu próprio ego, o resultado final de completa apatia — todas essas características clínicas parecem concordar plenamente com a suposição de que suas catexias objetais foram abandonadas”.
Freud observou grande número de modificações na fala, pois verificou que o paciente devota especial cuidado na sua maneira de se expressar, que se torna “afetada”. Salientou também que todo encadeamento de pensamento é dominado pelo elemento que possui como conteúdo uma inervação do corpo. Ele denominou tais comportamentos como “fala hipocondríaca” e “fala do órgão”. Para Freud, na esquizofrenia, as palavras estão sujeitas a um processo igual ao que interpreta as imagens oníricas dos pensamentos oníricos latentes — o que chamou de processo psíquico primário.
No entanto, depois de algumas observações de pacientes ele modificou a hipótese de que as catexias objetais eram abandonadas na esquizofrenia acrescentando que a catexia das apresentações da palavra de objetos é retida. Então, Freud, diferenciou a apresentação consciente de uma inconsciente afirmando que a consciente abrange a apresentação da coisa mais a apresentação da palavra que pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação da coisa apenas.
Se na esquizofrenia a fuga do ego consiste na retirada da catexia instintual dos pontos que representam a apresentação inconsciente do objeto, pode parecer estranho que a parte da apresentação desse objeto pertencente ao sistema pré-consciente — a saber, as apresentações da palavra que lhe correspondem — deva receber uma catexia mais intensa (Freud 1915). A catexia da apresentação da palavra não faz parte do ato de repressão, mas representa a primeira tentativa de recuperação ou de cura que se manifesta de forma dominante no quadro clínico da esquizofrenia.
Embora o objetivo de Freud não tenha sido o estudo propriamente dito da esquizofrenia, no seu texto “O inconsciente”, de certa forma houve uma contribuição para a compreensão de tal psicose. Através da apreciação do inconsciente e das diferenças deste com o pré-consciente ele nos mostrou algumas características da esquizofrenia que ficaram registradas na história da psicopatologia.
Calligaris (1989) diz ser possível, através da clínica psicanalítica, descobrir um diagnóstico de psicose mesmo na ausência de fenômenos classicamente psicóticos, tal diagnóstico é estabelecido na transferência. Defende que a estruturação psicótica ou neurótica é uma estruturação de defesa, no sentido em que Freud fala de psiconeurose de defesa. Assim, podemos pensar nos sintomas do personagem Pedro que “cria” uma mulher perfeita para se proteger da dor deixada pela sua ex-esposa. Acredito que Pedro existia como sujeito na medida em que era distinto do Real do seu corpo, por isso, se estruturou numa operação de defesa contra o que seria, imaginariamente, o seu destino se ele não se defendesse.
Segundo Calligaris (1989), a psicose aparece como um efeito de forclusão no desencadeamento da crise:
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“No desencadeamento da crise existe sempre alguma coisa como injunção feita ao sujeito psicótico de referir-se a uma amarragem central, paterna. Ele não tem possibilidade de referir-se a esta amarragem, que não foi simbolizada por ele, e a partir daí começa uma crise, com os fenômenos que a psiquiatria clássica descreveu, a saber, estado crepuscular, alucinações auditivas, tentativa de constituição de um delírio, alucinações cenestésicas, não auditivas, e assim por diante”. (Calligaris)
A constituição de um delírio depois de uma crise psicótica é a primazia da significação sobre o significante delirante, na medida que esta primazia é fracassada. Quando o sujeito psicótico encontra uma injunção a referir-se a uma metáfora paterna, que não foi simbolizada por ele, que então é uma referência impossível, o que acontece é que um lugar organizador volta para ele, mas não volta no simbólico, pois neste não há essa função, então volta ao real. O delírio é o trabalho de constituir uma metáfora paterna, uma filiação e a sua relativa significação, lidando com uma função paterna não simbolizada, mas sim no real.
Calligaris diz que todo sujeito que já teve uma crise psicótica, constitui um delírio para sair desta crise, mas isso não quer dizer que ele seja delirante. Ele pode ser perfeitamente adaptado, mas se ele passou por uma crise e saiu dela, é que ele constituiu alguma coisa que é homóloga a uma metáfora, com a especificidade de ser uma metáfora de filiação com respeito a uma função paterna no real.

O sintoma de autismo segundo Bleuler

Bleuler utilizou a primeira vez o termo autismo em 1911 como sendo um dos sintomas da esquizofrenia que descrevia uma cisão do mundo exterior com o eu, em outras palavras, autismo significa perda do contato com a realidade. Portanto, o autismo em Bleuler é um dos sintomas esquizofrênicos, ocorrendo em adultos, e não tem nenhuma relação com o chamado autismo infantil precoce, em Kanner ou psicopatia autista, em Hans Asperger. Contudo, Bleuler não acentua o caráter da perda da realidade, mas o aspecto da vivência de outra realidade. É como se o autista vivesse em dois mundos diferentes: o autista e o de relação com outros seres humanos. Esses mundos constituem a realidade para ele, sendo que a perda da realidade nunca é total.

Conclusão

Após este breve estudo sobre esquizofrenia, verificamos que a doença do personagem Pedro, do filme mencionado, não se enquadra no diagnóstico do DSM-IV-TR para esquizofrenia, pois não apresenta características suficientes de nenhum subtipo desta doença, embora haja predominância de delírios no personagem isto não é suficiente para enquadrá-lo em tal psicose. A conclusão é a de que não existiria um diagnóstico formado para Pedro, já que, também não acredito que se trate de transtorno delirante, pois o indivíduo apresentou um quadro sintomático que satisfaz o Critério A para esquizofrenia, por isso, sendo descartada a ideia de transtorno delirante, isso com relação aos manuais de classificação dos transtornos mentais. No entanto, para a psicanálise, seria possível ver alguns episódios de psicose como, por exemplo, a não diferenciação entre seu mundo de fantasia e a realidade; e o afastamento da vida social. Esses dois comportamentos podem ser comparados com um dos quatro sintomas fundamentais da esquizofrenia segundo Bleuler - sintoma que Bleuler nomeou de autismo.

Referências

DSM-IV-TR (2002). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. (tradução) Claudia Dornelles. 4.ed. Texto revisado. São Paulo, Artmed.
Freud, S. (1915). O INCONSCIENTE.
Site PsiqWeb, [1]
Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.
Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas.
Quinet, A. (2006). Os quatro As da esquizofrenia. Rio de Janeiro: Zahar.

Daniela Rosane Dumke